sábado, 18 de abril de 2009

BR-381: à espera de um morto ilustre

O texto abaixo intitulado “BR-381: À espera de um morto ilustre”, é de autoria de Carlos H. Peixoto, colaborador do jornal Morro do Geo e residente em Ipatinga. O artigo foi publicado no periódico em setembro de 2007.

 

Todos os caminhos levam a Roma. Mas, nos tempos do Império, a via Ápia era a melhor estrada, pavimentada, sinalizada e bem cuidada. Segura? Nem tanto. O mundo inteiro – inclusive quem ia de Minas para Roma ou quem vinha de Roma para Minas -, pegava a Via Ápia: assaltantes, estafetas, peregrinos, mendigos, prostitutas, leprosos, escravos, soldados, e também os homens calçados com sandálias de pescador - a pé, a cavalo, de carroça ou em lombo de burro. Políticos, senadores, papas, bispos, patrícios e os Príncipes das Coxambranas utilizavam a Via Ápia, que tinha o mesmo status da rodovia BR 381, responsável, atualmente, pelo escoamento de 50% das cargas terrestres brasileiras.

Naquele tempo os homens não tinham asas, portanto, os aviões não voavam, não voando, não despencavam dos céus como pássaros sem asas. Não havia outra opção, não bastava ter boca para ir a Roma, era preciso colocar os pés no chão e pegar a Via Ápia. Navio de passageiros? Tinha não. Galés de guerra. Trem? Só o da morte sob ferros – lanças, espadas, bolas de ferro, óleo fervente, as legiões e os aríetes em forma de falange, compacta, investindo contra o inimigo. Sai da frente. Um cenário horrível, degradante. Pedaços de pernas, braços, cabeças cortadas, vísceras espalhadas e corpos dilacerados. Gritos, uivos e gemidos; alguns corpos, sedentos, arrebentados, agonizavam por dias e dias, abandonados nos campos de batalha. Morria gente igual mosquito. Mas a morte não provocava alardes. Não deu nos jornais, em 70 a.C.: “Crucificados seis mil escravos ao longo da Via Ápia. Espártaco, o líder dos revoltosos, foi o último”.

Um dia um Homem foi crucificado e até hoje sua morte continua ecoando, depois de dois mil anos. Inúmeras são as cruzes pregadas ao longo da Três Oito Um. De janeiro a agosto de 2007, cerca de 50 pessoas morreram no trecho que liga Ipatinga a Belo Horizonte (falo “cerca de” por que essa contagem nunca é exata, e está sempre aumentando: um acidentado, internado na UTI, pode demorar mais de uma semana pra morrer). Ah, mais seis cachorros, dois gatos, cinco codornas, uma galinha da angola, um tatu, um bezerro e uma paca. Nenhum dos mortos mereceu mais do que os habituais quinze segundos de fama. O governador, os prefeitos ou os secretários - nenhuma autoridade apareceu na televisão para decretar: ISTO É UMA VERGONHA!

O lobby das transportadoras e dos fabricantes de caminhões, balanças fechadas, asfalto liso, buracos, curvas mal traçadas, consumo de bebidas alcoólicas em bares, restaurantes e bitacas ao largo da rodovia. Ser condenado e executado pelo Estado é privilégio dos mártires. Ser deixado à própria sorte, na luta pela sobrevivência, disputando uma beirada de asfalto com os caminhões, numa rodovia congestionada, sem acostamento e cheia de curvas traiçoeiras, é incúria do Estado. Quem nos governa tem o direito de determinar onde, de que forma e quando seremos assassinados?

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Imprudência

Abril 17, 2009 by blogdoleunam

Em uma estrada sem condições de suportar o aumento do tráfego - única opção para os caminhões, para aqueles que não têm dinheiro para pagar avião (Avião? Que avião? Em que aeroporto?), e nem tempo para esperar o único trem do dia -, todos os mortos que pegaram essa via foram imprudentes, e são culpados por antecipação. Por que um motorista imprudente sempre mata uma família de pessoas prudentes? Onde estava a fiscalização do Estado, que não zelou pela vida dos que respeitam as leis do trânsito? - os imprudentes que morram sozinhos! Até quando escutaremos da Polícia Rodoviária a mesma cantilena?

De dois em dois anos a BR 381 é recapeada, reformada, reestilizada, reorganizada e seu traçado é reestudado: eterna fonte de financiamento de campanhas, tema de debates inesgotáveis, de assembléias e de audiências, reduto eleitoral de hienas políticas - sejam municipais, estaduais ou federais -, muletas da morte em troca de votos. O nordeste dos demagogos: se a BR 381 for duplicada, que seja entre Belo Horizonte e Ipatinga, muitos políticos vão viver de quê? Vão falar de quê? Como vão se eleger?

Uma das maneiras de conhecer um povo é estudar como ele morre. Na África: de malária, AIDS, guerras e de fome. Na Europa: de velhice, câncer e de outras doenças degenerativas. No Rio de Janeiro, de balas perdidas, e também de outras encontradas nos corpos crivados de balas. Em Minas, de acidentes de trânsito. Perda do pênis: em 2006, em todo Brasil, foram notificadas mil amputações do membro sexual masculino - dados oficiais, fora os que caíram e ninguém ficou sabendo. Para um eleitor que não sabe cuidar do próprio pinto, qualquer político está de bom tamanho. Onde foi isso? Principalmente no Norte e Nordeste do Brasil; em Minas Gerais foram cinqüenta e seis amputações de pênis. Uma morte que poderia ser evitada, símbolo do atraso e da ignorância – no sentido lato da palavra.

A morte, fenômeno biológico, é também um fenômeno político. Muitos povos sacrificavam seus cidadãos para aplacar a fúria dos deuses. De acordo com a cultura do lugar, morre-se mais de um jeito do que de outro. Quase um Vietnam: 35 mil mortes em decorrência de acidentes de trânsito no Brasil, a cada ano. É como se caísse um BOIENG 737, lotado, há cada trinta e seis horas. Uma média de 93 óbitos por dia. O custo das mortes nas estradas chega a R$ 22 bilhões por ano, considerando-se os prejuízos humanos e materiais. Normal. Morrer não é vergonhoso. Vergonha é roubar e não agüentar carregar. Nesses tempos midiáticos, qual é o modo mais importante de morrer? Que tipo de morte vende mais jornal? Dá na televisão? Alcança maior ibope? A AIDS perdeu o encanto, não é mais “exclusividade” de artistas – nem fazem mais propagandas. No tempo dos Romanos, era usual o pobre ser crucificado, jogado às feras, envenenado ou estripado. Morrer em frente às câmeras, com transmissão ao vivo para todo o Brasil, ou morrer, anônimo, como um cão, o sangue escorrendo pelo asfalto, entre Belo Horizonte e Monlevade?

Dinheiro tem, desde que não seja desviado, neste ano o Governo Federal deverá arrecadar R$ 8 bilhões só com a CIDE. A pessoa que morre na BR 381, muitas vezes só fica sabendo que morreu - principalmente se a coisa se der entre Belo Horizonte e Monlevade -, muito tempo depois, quando um conhecido seu, morto por outra causa, chega ao Além e comenta, assim, como quem não quer nada:
-Fulano, que coisa horrível foi a sua morte na curva de São Gonçalo do Rio Abaixo!
-Você viu?
-Não. Li em um jornal, três meses depois, quando fui comprar peixe e lá estava o seu retrato. Não deu pra ler a matéria toda, na verdade uma notinha, pois o peixe, um surubim dos grandes, umedeceu o embrulho. Eu nem sabia que você tinha morrido!
-Pois é. Eu também. Só fiquei sabendo depois da missa de sétimo dia, quando São Pedro veio me acordar para os ensaios do coral.

A morte não dói. O que dói é o esquecimento.

 

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